Linguagem simples. Quid est hoc Concurseiro?
Recentemente o CNJ encabeçou uma campanha pela busca da linguagem acessível nos processos judiciais, bem como no trato diário das demandas levadas ao Poder Judiciário e sua interlocução com a sociedade. O Conselho propôs, então, o “pacto nacional do judiciário pela linguagem simples”.
Perfeito! Excelente! Necessário! Que já vem em boa
hora, se não for tardio! O bom senso agradece e o rebusco pedante cede espaço
para o acesso democrático à Justiça. Disso, não se duvida.
Então profissionais, estudantes, concurseiros já podem
lacrar e mitar geral nos fóruns da vida, nas provas de concurso e nos autos dos
processos???
Calma! Penso que a extensão das mudanças e propostas não
seja tão aguda. A Ciência Jurídica, assim como qualquer outra, não deixará de
ter suas amarras linguísticas tão facilmente e, pra ser bem sincero, nem pode
ser diferente.
Note-se, preliminarmente (tradução: antes de mais
nada), que o presente artigo não se preocupou em trazer uma linguagem simples e
acessível, em que pese não ser também nenhum baluarte do vernáculo jurídico
culto. E porque posso escrever assim, mesmo falando de linguagem acessível e
simples? É o que vamos investigar.
Com efeito, será preciso distinguir o que é linguagem
simples do que é linguagem técnica e o quanto uma linguagem técnica poderá ser
simples e vice versa. Importa ainda saber o que é linguagem acessível, bem como
quando e para quem ela se impõe.
Comecemos imaginando um diálogo nosocomial, entre médicos,
na busca do diagnóstico e tratamento de um moribundo; e na sequência o que vem
a ser essa mesma conversa, de um desses médicos, com os familiares do
desafortunado.
Certamente, entre os profissionais da saúde a comunicação
contém uma infinidade de termos próprios que tornam o diálogo mais eficiente,
encurtam os períodos e carregam assertivas e conclusões já consolidadas no meio
profissional, mas que, em regra, são inacessíveis ao leigo. Por isso,
apropriada comunicação entre entendidos.
Já, a transmissão das mesmas ideias ao familiar não pode
conter os mesmos termos e expressões, outrora úteis entre os iniciados, sob
pena de absoluta ineficácia da comunicação e todas implicações que disso possa
surgir.
É dizer, com este rápido exemplo, um bom profissional deve
saber se expressar adequadamente, de acordo com a realidade circundante. Cada
interlocutor, cada contexto, cada momento exigirá um desempenho diferente. O
nível de acerto nos mais diversos cenários pode ser, inclusive, um indicativo
da qualidade profissional do comunicador.
Quer se crer que, mutatis mutandi, é neste
segundo contexto que age o CNJ e os Tribunais para a simplificação da
linguagem. Em assim sendo, reitere-se: Perfeito! Excelente!
Nesse passo, a parte disponível e útil ao público em geral é
que deve conter uma linguagem simples e acessível. É de fato, totalmente
inaceitável que, a parte em um processo judicial tenha em mãos uma decisão
qualquer, que lhe afete, e precise de um “tradutor juramentado” para
compreendê-la. É de todo irrazoável que as sessões de um tribunal sejam
transmitidas ao vivo, mas que o telespectador precise acionar uma “tecla SAP”
para poder acessar aquele mundo alienígena. Portanto, novamente, o bom senso
agradece e muito.
Mas isso decreta o fim da linguagem própria do direito? Dois
operadores do direito, em um futuro próximo, conversarão entre si como se
expressões próprias e tradição jurídica não existissem? Teremos professores na
academia traduzindo Habermans para o formato maneiro de Felipe Neto? Veremos
provas de concurso trocando o latim por trechos do funk? Acredito que, nas
CNTP, não!
A linguagem técnica é parte do éthos de um
determinado grupo dedicado à determinada área do conhecimento. Os termos
técnicos, para além de diferenciar uma classe, uma profissão, são absolutamente
úteis na transmissão de ideias elaboradas e previamente trabalhadas. Acreditem,
a linguagem técnica não deveria ser motivo de vaidade e segregação, sua razão
de ser é bem mais nobre.
Quando o operador do direito emprega uma expressão
específica, não raro em língua estrangeira, em geral desconhecida do grande
público, não deveria significar alguma arrogância, soberba e nem mesmo
erudição, mas tão somente que, acerca daquilo que diz, já se formou um saber
reconhecido no meio.
Ao trazer expressões e termos que, só por si, já estão
carregadas de um conteúdo subjacente, todo aquele conhecimento passa a integrar
imediatamente a comunicação. O problema é quando o comunicador despeja seus
vocábulos rebuscados para intimidar, para se destacar ou pior, para oprimir.
Mas veja que, o problema está no mau uso da linguagem e não na linguagem em si.
Um aparte: até mesmo a linguagem não verbal, tem sua
utilidade e aplicação nos nichos diversos. Perceba, por exemplo, como se
comunicam os profissionais de segurança pública no teatro de operações. A
propósito, “teatro de operações” é uma expressão própria desse nicho
profissional e carrega consigo uma enorme quantidade de informação agregada.
Aqui, há notório exemplo de como a linguagem específica (não verbal) é
indispensável, tornando-se mesmo vital.
Pergunta: deveria o agente policial adotar código e gestos
acessíveis? Sem mais delongas, parece-me que não. São sinais que otimizam o
trabalho específico de alguém, sem que, naquele contexto, interessem a outrem.
Pois bem. Quais seriam então os ambientes nos quais a
linguagem técnica jurídica pode cavalgar livremente, sem afronta ao fundamento
do Pacto Nacional?
Data venia, data máxima venia (Não podia faltar neste
texto o símbolo maior da linguagem jurídica. Expressão tão útil, mas que também
pode ser tão pedante, a depender, justamente, do contexto), na academia,
nos debates orais e escritos, nos eventos, nos embates, e nas provas de
concursos, a tendência é que a linguagem não seja sempre simplificada, ou
ao menos, não seja integralmente simples.
A última hipótese interessa sobremaneira ao presente
excerto. Não exito em dizer: Concurseiros e concurseiras: a onda da linguagem
simples não te trará facilidades, não se iluda! Dada a cláusula rebus
sic stantibus, os descomplicadores e os tik tokers do momento não serão os
mestres do direito a te fazer conquistar uma vaga. A tal da linguagem simples
não é para os concursos! E por quê?
A uma, porque a letra da lei contém expressões próprias e,
inegável, um bom juridiquês por vezes. Ainda que a Lei Complementar nº 95/98,
em seu art. 11, II, “a”, estabelece que na busca da clareza e precisão, deve-se
“articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita
compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza
o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma”, o fato é que não
se dispensa a linguagem técnica, conjugar-se-á com a comum, no máximo.
Mas veja, uma grande parte da legislação tem destinatário
certo. Tá, tá, eu sei que a lei é para todos e ninguém se exime de conhecê-la.
Mas a que serve, por exemplo o Código de Processo Civil? Ou então, quem opera
com a Lei dos Registros Públicos? Por mais que se objetive clareza e precisão,
a questão é, clareza e precisão para quem?
O que dizer da doutrina e também da jurisprudência? A
doutrina, é bem verdade, vem sofrendo influxo da contemporaneidade, das
gerações do conhecimento fast food. Assim, ganham espaço o direito
em frases, em tabelas, em mapas mentais, em tiras, em teses ou em quadrinhos.
No entanto, por ora, não parece que todo examinador se anime com isso. Por um
bom tempo ainda se verá a doutrina clássica ou a nova doutrina de profundidade
habitando as melhores questões e também as mais difíceis.
A jurisprudência tende a seguir o Pacto e pode, em alguma
medida, simplificar-se, tornando-se mais acessível. Isso, ao menos quanto às
conclusões porque o debate subjacente, enquanto feito por iniciados no direito,
tende a perpetuar a linguagem técnica, pelo simples fato de que ela é útil. De
igual forma, as melhores questões não se limitam às teses da jurisprudência,
sobretudo em fases avançadas de um certame. Ao reverso, o fundamento ainda
importa e “tiras da juris” não costuma resolver muita coisa.
A duas, porque as provas de concurso são, também, uma forma
de comunicação entre semelhantes e não para o público. Do examinador bacharel
ao examinado bacharel. Veja, são profissionais avaliando aspirantes à
profissionais. Então, o recado será claro: se você quer fazer parte desta
casta, você deve se comportar e falar como ela. Isso ainda não mudou!
A três, porque poucos serão aprovados e muitos serão
eliminados. Nesse aspecto, um bom parâmetro de avaliação é a qualidade da
comunicação. Evidente, pode-se avaliar a comunicação com o público. Esta deve
ser simples. Mas, também é possível (e bem mais provável) avaliar a comunicação
técnica. Ora, esta última se insere na área de conforto do examinador.
A quatro, porque a Ciência do Direito tem expressões
próprias infungíveis. Percebe? Prescrição, perempção, decadência, anticrese,
avulsão, antinomias, efeito regressivo, provimento, boa-fé objetiva e tantas
outras, são todas expressões da língua pátria, que podem não ser tão amigáveis
ao público em geral, mas são do cotidiano jurídico.
A cinco, porque o direito pátrio sofre influxo externo. A
referência a determinados conceitos ou experiências alienígenas, na língua
original inclusive, também tem a sua utilidade intrínseca. Juro! Escrever pas
de nullité sans grief pode não ser despropositado e nem pedante. A
expressão é perfeitamente traduzível, porém a citação no idioma original, além
de fazer homenagem à origem da teoria, carrega todo o conhecimento que se
formou em torno dela. As Class Actions ou os punitive
damages trazem consigo toda uma carga subjacente que dispensa
apresentações, se o interlocutor for do ramo, claro. E assim por diante.
Veja, por exemplo, o enunciado da questão trazida pela FGV
no concurso para membro do MPRJ, na prova aplicada agora em 03/08/25:
“Considere as situações a
seguir e assinale aquela em que o melhor fundamento para afastar o prazo
prescricional é a aplicação do clássico princípio contra non valentem
agere non currit proescriptio.”
A interpenetração também está na doutrina. Se se diz dos
axiomas de Ferrajoli, então já se tem que está em pauta dez premissas
conhecidas do exegeta. Está na jurisprudência. Se se diz do “estado de coisas
inconstitucional”, invocamos o precedente Colombiano sem nem o citar
nominalmente.
Assim, linguagem simples tem seu lugar e valor, tanto quanto
a linguagem técnica. Esta tem suas peculiaridades, que podem conduzir a uma
incompreensão generalizada. Por isso, a linguagem técnica deverá ser reservada
para quem e para quando necessária for.
Escrevi o presente artigo, como disse, sem maiores
preocupações com a “facilitação” do conteúdo. Foi para você que chegou até aqui
e me entendeu, pois és um iniciado provavelmente. Claro, este é um ambiente
propício ao uso de uma linguagem própria. Não precisamos, por ora, que ninguém
nos entenda, mas precisamos nos entender, e é o que basta.
Resumindo em linguagem bem simples: se você não tem as
manhas, sem um especialista não entra não!
Chandler Galvam Lube
Ten Cel PM
Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais
Aprovado para Promotor de Justiça
Idealizador do LexLege
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